Estou aqui com minha primeira postagem de 2015, e para iniciar o ano bem, tenho
um pequeno resumo da Clarice Lispector guardado para estudantes de Letras e
afins. Bem, eu havia me esquecido completamente dele, mas mexendo aqui nas
pastas o encontrei e decide compartilhá-lo, pois pode ajudar outras pessoas com
suas pesquisas. Mais informações, acho que vocês encontrarão no Guia
do Estudante.
Segue então, um breve resumo do livro Felicidade clandestina e uma breve
apresentação da autora Clarice Lispector.
"Felicidade
Clandestina" - resumo e análise da obra de Clarice Lispector
Lançado inicialmente em 1971,
"Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector
que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos
nessa obra podem mais facilmente serem classificados como “contos”, mas como
Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em
Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto,
ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. De fato,
muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal
do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Ao todo, Felicidade Clandestina reúne 25 textos que tratam de temas diversos,
tais como a infância, a adolescência, a família, o amor e questões da alma.
Assim como a crônica que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo
de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma
personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu
passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica
de autoanálise.
Uma das técnicas mais empregadas nesses contos é a da narrativa em fluxo de
consciência, que é uma tentativa de representação dos processos mentais das
personagens. Esse tipo de narrativa não possui uma estrutura sequencial, uma
vez que o pensamento não se expressa de uma forma ordenada. Dessa forma, seria
como se o autor não tivesse controle sobre a personagem e a deixasse entregue a
seus próprios pensamentos e divagações.
Assim, dentro desse processo de associação de ideias e pensamentos desconexos,
em um dado momento a personagem passa por um momento de epifania, que é uma
súbita revelação ou compreensão de algo. Ao passar por esse momento de
epifania, a personagem descobre a essência de algo que muda sua visão de mundo
ou sua própria vida. Através desses momentos de epifania, personagens que
poderiam ser considerados sem relevância alguma aos olhos da sociedade ganham
profundidade psicológica e existencial.
Contos representativos
“Felicidade clandestina”
Nesta crônica a narradora em primeira pessoa conta sua primeira experiência com
um livro. Porém, este livro é de uma menina má que o oferece emprestado para a
narradora, mas sempre inventa uma desculpa para não entregar o livro a ela. Até
que a mãe da menina má descobre isso e entrega o livro para a narradora, que
passa a saborear o livro como se fosse um amante. Esta crônica tem um cunho
autobiográfico, como comprovou a própria irmã da escritora dizendo que se
lembra da “menina má”.
O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora
parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na
crônica parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”,
uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de
felicidade. Uma vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo
que desejasse, ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se
redescobrir possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um
sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria
felicidade para que esse sentimento não acabe. Concluísse, portanto, que a
felicidade deve ser descoberta a todos os momentos e nas coisas mais simples.
“Amizade sincera”
Este conto é a história de dois homens que se tornam amigos inseparáveis, mas
em dado momento começa a faltar assunto entre eles. Os dois vão morar junto,
mas não conseguem mais voltar a ser amigos como antes e, por fim, eles tomam
rumos diferentes na vida e sabem que não irão mais se ver.
Este conto tematiza os paradoxos das relações humanas e o individualismo das
pessoas. Se por um lado queremos manter uma amizade a todo custo, a ponto de
quase “ceder a alma” ao amigo, quem de fato gostaria de “ceder a alma”? –
pergunta-se o narrador. Assim como aparece em outros contos de Clarice, a
relação entre as pessoas parece estar fundamentada em uma “relação de troca”.
No conto, os dois amigos já não encontram mais o que “trocar” entre si e disso
nasce uma grande melancolia e desilusão, corroendo a amizade entre os dois. Por
fim, o que sobra de sincero aos dois é saber que eles não mais se falarão
porque escolheram isso.
“O ovo e a galinha”
Este é um dos contos mais emblemáticos de Clarice Lispector. A partir da visão
de um ovo que está sobre a mesa da cozinha, o narrador inicia uma série de
pensamentos a cerca das mais diversas coisas. Esses pensamentos aparecem de
forma aleatória e em fluxo de consciência, onde uma ideia, sentimento, sensação
etc, desencadeia outro e assim sucessivamente. Dessa forma, ele vai
desconstruindo o objeto que está sendo visto e o ovo passa, então, a ser uma
representação de qualquer coisa, física ou abstrata (liberdade, amor, vida,
etc.). Assim, através dessa “desconstrução”, o ovo deixa de ser simplesmente um
ovo e torna-se a chave para a compreensão do amor, da vida e da própria
existência humana.
“Os desastres de Sofia”
Neste conto a narradora relembra seus tempos de escola. Por volta dos nove anos
de idade, ela nutre uma espécie de amor pelo professor, um homem feio e
aparentemente frustrado. A menina-narradora entra em um jogo sádico com o
professor, de forma que ela faz tudo para que ele a odeie. Até que em certo
momento da narrativa ele pede para que a sala escreva uma história a partir de
dados que ele fornece. Ansiosa para ser a primeira a terminar, a menina-narradora
escreve a sua história rapidamente e sai da sala triunfante. Porém, após o
professor ler o texto que ela escreveu, ele se mostra impressionado e até
sorri. A menina-narradora percebe que o olhar do professor não tem mais o ódio
de antes, e ela se desespera com sua nova realidade. A partir disso ocorre um
momento de epifania em que ela se depara com a verdade do mundo e sua vida
muda.
O título do conto é provavelmente uma alusão a um livro infantil escrito no
século XIX pela francesa Condessa de Ségur e que também se chama “Os desastres
de Sofia”. Porém, no conto de Clarice, o nome “Sofia” não aparece nenhuma vez
além do título. Este nome, “Sofia”, é de origem grega e significa “sabedoria”.
Assim como em muitos outros contos da escritora, o núcleo temático de “Os
desastres de Sofia” parece ser o da autodescoberta. Isso parece ser sugerido
também pela ausência do nome Sofia no conto, pois a personagem estaria em busca
de sua própria identidade, o que acontece só ao final do livro com o momento de
epifania.
Por fim, cabe ressaltar que a narradora traça o seu passado de uma forma
autobiográfica, mas ela não o faz de uma forma “fiel”. Ao invés de simplesmente
contar os fatos e acontecimentos de seu passado, ela o reinventa a partir das
experiências do “eu” presente. Isso fica bem marcado em passagens em que a
narradora confessa ter dúvidas sobre o que aconteceu ao certo em determinadas
ocasiões e se mostra constantemente hesitante. Assim, através da reconstrução
não sistemática de seu passado, a narradora constrói a imagem que faz de si
mesmo no seu presente.
Comentário do professor
O Prof. Marcílio Gomes Júnior, da Oficina do Estudante, frisa que Felicidade
Clandestina foi publicado no auge da carreira de Clarice Lispector, sendo o seu
quarto livro de contos. Como escritora, pode-se dizer que Clarice já havia
atingido sua maturidade e conseguia realizar com maestria o que seria o ponto
chave de suas obras: o estudo e análise do ser humano. Através de um mergulho
no universo interior das personagens, Clarice trazia à tona temas
existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. Nesse
ponto, o prof. Marcílio comenta que ela se aproxima bastante de escritores como
o russo Dostoievsky (autor de Crime e Castigo), e dos brasileiros Machado de
Assis e Graciliano Ramos. Em seus contos, Clarice também explora muito o tema
da família e seus confrontos, exibindo o cerne da família brasileira.
Quanto à questão existencialista, o prof. Marcílio chama atenção para o fato de
que esse existencialismo sempre conduz o sujeito (as personagens) para um
inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos
personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e
inquietações. Através de um mergulho no interior do ser humano, essas
personagens cheias de crises existenciais sempre irão passar por um momento de
epifania, que seria um “momento de tomada de consciência” ou um “momento de
iluminação”. Esta experiência epifânica irá ampliar o campo de percepção da personagem
e ela será elevada a outro nível de consciência, passando a ver o mundo a sua
volta de outra maneira. Assim, após ver a existência humana de um novo modo, a
personagem ou voltará a ser o que era, mas agora com uma consciência elevada,
ou então irá manter seu novo estado de consciência.
Por fim, o prof. Marcílio ressalta que como a preocupação de Clarice é com a
personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao
redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira
diretamente ou ativamente na história, não encontraremos nenhuma passagem
descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem
subjetivada, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista
formal, vale a pensa ressaltar que Clarice utiliza um chamado estilo circular,
que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para
conseguir um efeito enfático.
Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia.
Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil,
terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se
para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice
perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade
de Direito, e publica no ano seguinte seu primeiro conto, Triunfo, em uma
revista. Forma-se em 1943 e casa-se no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel
Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em
diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro
romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da
Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959
e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica
seu primeiro livro de contos, Laços de família.
Em 1967, um cigarro provoca um
grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco
inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua
com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último
livro, A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer.
A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu
aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são:
"Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família"
(1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira"
(1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade
clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da estrela"
(1977).